Ricardo Gondim
Tempo de partir 13/02/2012
Desabafo
Tempo de partir
Tempo de partir
Não perdi o juízo. Minha espiritualidade não foi a pique. Minhas muitas
tarefas não me esgotaram. Entretanto, não cessam os rótulos e os diagnósticos
sobre minha saúde espiritual. Escrevo, mas parece que as minhas palavras chegam
a ouvidos displicentes. Para alguns pareço vago, para outros, fragmentado e
inconsistente nas colocações (talvez seja mesmo). Várias pessoas
avisam que intercedem a Deus para que Ele me acuda.
Minha peregrinação cristã está, há muito, marcada por rompimentos.
O primeiro, rachei com a Igreja Católica, onde nasci, fui batizado e fiz a
Primeira Comunhão. Em premonitórias inquietações não aceitava dogmas. Pedi
explicações a um padre sobre certas práticas que não faziam muito sentido para
mim. O sacerdote simplesmente deu as costas, mas antes advertiu: “Meu filho,
afaste-se dos protestantes, eles são um problema!”.
Depois de ler a Bíblia, decidi sair do catolicismo; um escândalo para
uma família que se orgulhava de ter padres e freiras na árvore genealógica –
e nenhum “crente”. Aportei na Igreja Presbiteriana Central de Fortaleza.
Meus únicos amigos crentes vinham dessa denominação. Enfronhei em muitas
atividades. Membro ativo, freqüentei a escola dominical, trabalhei com outros
jovens na impressão de boletins, organizei retiros e acampamentos. No cúmulo da
vontade de servir, tentei até cantar no coral – um desastre. Liderei a União de
Mocidade. Enfim, fiz tudo o que pude dentro daquela estrutura. Fui calvinista.
Acreditei por muito tempo que Deus, ao criar todas as coisas,
ordenou que o universo inteiro se movesse de acordo com sua presciência e
soberania. Aceitei tacitamente que certas pessoas vão para o céu e para o
inferno devido a uma eleição. Essa doutrina fazia sentido para mim até porque
eu me via um dos eleitos. Eu estava numa situação bem confortável. E podia
descansar: a salvação da minha alma estava desde sempre garantida. Mesmo que
caísse na gandaia, no último dia, de um jeito ou de outro, a graça me
resgataria. O propósito de Deus para minha vida nunca seria frustrado, me
garantiram.
Em determinada noite, fui a um culto pentecostal. O Espírito Santo
me visitou com ternura. Em êxtase, imerso no amor de Deus, falei em línguas
estranhas – um escândalo na comunidade reverente e bem comportada. Sob o
impacto daquele batismo, fui intimado a comparecer à versão moderna da
Inquisição. Numa minúscula sala, pastores e presbíteros exigiram que eu negasse
a experiência sob pena de ser estigmatizado como reles pentecostal. Ameaçaram.
Eu sofreria o primeiro processo de expulsão, excomunhão, daquela igreja desde
que se estabelecera no século XIX. Ainda adolescente e debaixo do escrutínio
opressivo de uma gerontocracia inclemente, ouvi o xeque mate: “Peça para sair,
evite o trauma de um julgamento sumário. Poupe-nos de sermos transformados
em carrascos”. Às duas da madrugada, capitulei. Solicitei, por carta, a saída.
A partir daquele momento, deixei de ser presbiteriano.
De novo estava no exílio. Meu melhor amigo, presidente da Aliança
Bíblica Universitária, pertencia a Assembleia de Deus e para lá fui. Era
mais um êxodo em busca de abrigo. Eu só queria uma comunidade onde pudesse
viver a fé. Cedo vi que a Assembleia de Deus estava
engessada. Sobravam legalismo, politicagem interna e ânsia de poder
temporal. Não custou e notei a instituição acorrentada por uma tradição
farisaica. Pior, iludia-se com sua grandeza numérica. Já pastor da Betesda
eu me tornava, de novo, um estorvo. Os processos que mantinham o povo preso ao
espírito de boiada me agrediam. Enquanto denunciava o anacronismo assembleiano
eu me indispunha. A estrutura amordaçava e eu me via inibido em meu senso
crítico. A geração de pastores que ascendia se contentava em ficar quieta.
Balançava a cabeça em aprovação aos desmandos dos encastelados no poder. Mais
uma vez, eu me encontrava numa sinuca. De novo, precisei romper. Eu
estava de saída da maior denominação pentecostal do Brasil. Mas, pela primeira
vez, eu me sentia protegido. A querida Betesda me acompanhou.
Agora sinto necessidade de distanciar-me do Movimento Evangélico. Não
tenho medo. Depois de tantas rupturas mantenho o coração sóbrio. As decepções
não foram suficientes para azedar a minha alma, sequer fortes para roubar
a minha fé. “Seja Deus verdadeiro e todo homem mentiroso”.
Estou crescentemente empolgado com as verdades bíblicas que revelam
Jesus de Nazaré. Aumenta a minha vontade de caminhar ao lado de gente humana
que ama o próximo. Sinto-me estranhamente atraído à beleza da vida. Não cesso
de procurar mentores. Estou aberto a amigos que me inspirem a alma.
Então por que uma ruptura radical? Meus movimentos visam preservar a
minha alma da intolerância. Saio para não tornar-me um casmurro
rabugento. Não desejo acabar um crítico que nunca celebra e jamais se
encaixa onde a vida pulsa. Não me considero dono da verdade. Não carrego a
palmatória do mundo. Cresce em mim a consciência de que sou imperfeito.
Luto para não permitir que covardia me afaste do confronto de meus
paradoxos. Não nego: sou incapaz de viver tudo o que prego – a
mensagem que anuncio é muito mais excelente do que eu. A igreja que
pastoreio tem enormes dificuldades. Contudo, insisto com a necessidade
de rescindir com o que comumente se conhece como Movimento Evangélico.
1. Vejo-me incapaz de tolerar que o
Evangelho se transforme em negócio e o nome de Deus vire marca que vende bem.
Não posso aceitar, passivamente, que tentem converter os cristãos em
consumidores e a igreja, em balcão de serviços religiosos. Entendo que o
movimento evangélico nacional se apequenou. Não consegue vencer a tentação de
lucrar como empresa. Recuso-me a continuar esmurrando as pontas de facas de uma
religião que se molda à Babilônia.
2. Não consigo admirar a enorme maioria
dos formadores de opinião do movimento evangélico (principalmente os que se
valem da mídia). Conheço muitos de fora dos palcos e dos púlpitos. Sei de
histórias horrorosas, presenciei fatos inenarráveis e testemunhei decisões
execráveis. Sei que muitas eleições nas altas
cupulas denominacionais acontecem com casuísmos eleitoreiros
imorais. Estive na eleição para presidente de uma enorme denominação. Vi dois
zeladores do Centro de Convenções aliciados com dinheiro. Os dois receberam
crachá e votaram como pastores. Já ajudei em “cruzadas” evangelísticas
cujo objetivo se restringiu filmar a multidão, exibir nos Estados Unidos e
levantar dinheiro. O fim último era sustentar o evangelista no luxo nababesco.
Sou testemunha ocular de pastores que depois de orar por gente sofrida e
miserável debocharam delas, às gargalhadas. Horrorizei-me com o programa da CNN
em que algumas das maiores lideranças do mundo evangélico americano apoiaram a
guerra do Iraque. Naquela noite revirei na cama sem dormir. Parecia impossível
acreditar que homens de Deus colocam a mão no fogo por uma política beligerante
e mentirosa de bombardear outro país. Como um movimento, que se pretende
portador das Boas Novas, sustenta uma guerra satânica, apoiada pela indústria
do petróleo.
3. No momento em que o sal perde o sabor para
nada presta senão para ser jogado fora e pisado pelos homens. Não
desejo me sentir parte de uma igreja que perde credibilidade por priorizar
a mensagem que promete prosperidade. Como conviver com uma religião que busca
especializar-se na mecânica das “preces poderosas”? O que dizer de homens e
mulheres que ensinam a virtude como degrau para o sucesso? Não suporto conviver
em ambientes onde se geram culpa e paranoia como pretexto de ajudar as
pessoas a reconhecerem a necessidade de Deus.
4. Não consigo identificar-me com
o determinismo teológico que impera na maioria das igrejas evangélicas. Há um
fatalismo disfarçado que enxerga cada mínimo detalhe da existência como parte
da providência. Repenso as categorias teológicas que me serviam de óculos para
a leitura da Bíblia. Entendo que essa mudança de lente se tornou ameaçadora.
Eu, porém, preciso de lateralidade. Quero dialogar com as ciências sociais.
Preciso variar meus ângulos de percepção. Não gosto de cabrestos. Patrulhamento
e cenho franzido me irritam . Senti na carne a intolerância e como o ódio está
atrelado ao conformismo teológico. Preciso me manter aberto à companhia de
gente que molda a vida, consciente ou inconsciente, pelos valores do Reino de
Deus sem medo de pensar, sonhar, sentir, rir e chorar. Desejo desfrutar
(curtir) uma espiritualidade sem a canga pesada do legalismo, sem o
hermético fundamentalismo, sem os dogmas estreitos dos saudosistas e sem a
estupidez dos que não dialogam sem rotular.
Não, não abandonarei a vocação de pastor. Não negligenciarei a
comunidade onde sirvo. Quero apenas experimentar a liberdade prometida nos
Evangelhos. Posso ainda não saber para onde vou, mas estou certo dos caminhos
por onde não devo seguir.
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